América do Sul

Cenário político na Argentina é incerto após condenação de Kirchner

Referência de oposição, Cristina Kirchner ficará inelegível pelo resto da vida e, cumprirá prisão domiciliar. Analistas afirmam que o cenário político na Argentina será bastante modificado, mas é arriscado opinar sobre o futuro

Ex-presidente quer ser dispensada da tornozeleira eletrônica e permanecer no apartamento perto do Congresso Nacional   -  (crédito:  AFP)
Ex-presidente quer ser dispensada da tornozeleira eletrônica e permanecer no apartamento perto do Congresso Nacional - (crédito: AFP)

A condenação de inelegibilidade permanente e prisão domiciliar por seis anos da ex-presidente da Argentina Cristina Kirchner (2007-2011 e 2011-2015), de 72 anos, reacenderam no npaís uma série de discussões sobre o cenário político e o futuro do chamado peronismo — movimento que reúne distinatas força da esquerda e que na sua maioria a apoiam. Especialistas consultados pelo Correio alertam que a incerteza ainda prevalece e que será necessário mais tempo para verificar se, cumprindo prisão domiciliar, ela conseguirá conduzir seus seguidores e, mesmo impossibilitada de concorrer às eleições, fará sucessores.

As manifestações pela condenação de Kirchner se misturam a um clima social tenso por protestos de estudantes, cientistas e profissionais de saúde contra os cortes orçamentários do governo. Para o professor Gustavo Menon, coordenador de relações internacionais da Universidade Católica de Brasília (UCB), e docente no  Programa de Pós-Graduação em Integração da América Latina da USP, há uma alteração drástica no equilíbrio de forças políticas na Argentina.

"A condenação de Kirchner reforça o debate sobre o fenômeno do lawfare (o uso do Judiciário para fins políticos, visando neutralizar lideranças políticas), padrão observado também no Brasil, Peru e no Equador. A sentença pode ser interpretada como um sinal de enfraquecimento das forças progressistas e nacional-populares na América do Sul, em um momento de desintegração econômica e perda de protagonismo dos projetos de integração regional no subcontinente."

Honra 

Paralelamente, Cristina Kirchner busca uma saída honrosa para a decisão que a obriga a devolver 85 bilhões de pesos, cerca de US$ 70 milhões, para os cofres públicos, e ficar restrita ao seu apartamento, em prisão domiciliar. Na Argentina, idosos acima dos 70 anos, têm direito à prisão domiciliar, que ela pediu para em um apartamento, a poucos minutos do Congresso Nacional, além de manter a dispensa de usar tornozeleira eletrônica, que tem, desde a tentativa de assassinato, que sofreu em 2022. O advogado Gregorio Dalbón, que a ex-presidente, denunciou que a condenação é motivada por "perseguição política" ao Tribunal Penal Internacional, em Haia. Ela foi responsabilizada por istração fraudulenta em contratos de obras públicas na província de Santa Cruz (sul). "Essa condenação é o resultado de um processo viciado, direcionado desde sua origem para atingir um objetivo político: proscrever a mulher que mais vezes ganhou nas urnas desde a recuperação democrática", escreveu ele na rede social X.

Anteontem, a própria Kirchner acusou de "marionetes" os três magistrados da Suprema Corte que decidiram contra ela e, diante de uma multidão de simpatizantes, assegurou que "a sentença já estava escrita" antes do julgamento. Questionado sobre a senteça, o adversário político da peronista, presidente argentino, Javier Milei, que está em Israel, foi lacônico: "Justiça. Fim". Porém, logo após o anúncio da decisão, milhares de seguidores da política saíram às ruas em protesto. Há indícios de mais manifestações nos próximos dias.

A exemplo de outros analistas ouvidos pelo Correio, Menon afirmou que a decisão da Justiça impondo a inelegibilidade a Cristina Kirchner "muda significativamente o cenário político". "Duas hipóteses podem ser consideradas: de um lado, alguns analistas apontam que a ausência de Cristina tende a marginalizar gradualmente seu grupo político; de outro, sua prisão pode fortalecer e reacender o peronismo, unificando-o em torno de sua figura como vítima de perseguição judicial e criando uma narrativa de resistência." Segundo ele, o nome apontando como sucessor natural da ex-presidente é o do governador da província de Buenos Aires, Axel Kicillof.

Indulto 

É o perdão presidencial. Na Argentina, a possibilidade existe, mas considerando que Cristina Kirchner e Javier Milei são adversários políticos, a alternativa é remota. Há, ainda, o agravante de ela ser condenada por corrupção contra o Estado argentino. No ado, foram concedidos indultos pelo ex-presidente liberal Carlos Menem (1989-1999) a militares condenados por crimes contra a humanidade durante a última ditadura (1976-1983). Eles foram posteriormente revogados por inconstitucionalidade.

 Eu acho...

"A ausência de Cristina Kirchner pode tirar do governo seu principal "inimigo" e dificultar a manutenção de uma retórica antiperonista, que sustenta parte de sua estratégia política"

Gustavo Menon, coordenador do curso de rela~ções internacionais da Universidade Católica de Brasília (UCB)

 

Duas perguntas para...

Alejandro Cesar Simonoff, doutor em relações internacionais, professor titular de história contemporânea na faculdade de ciências humanas e da educação e relações internacionais na  Universidade Nacional de La Plata (UNLP), na Argentina

 

Como está a Argentina hoje após a decisão da Suprema Corte?

Há um elevado grau de convulsão no país sob o impacto da decisão da Justiça. Muitas forças políticas saíram às ruas, houve protestos e manifestações. Temos aí pelo menos dois cenários: se a prisão domiciliar de Cristina Kirchner Fernández significará a retração do peronismo ou se eclodirá na formação de uma resistência. Outro aspecto é se avançará um processo de de fragmentação dessas forças que a apoiam.

Pelas manifestações de terça-feira, é possível afirmar que ela conta com a lealdade de seus seguidores?  

É possível afirmar que existe, sim, uma mobilização intensa. Porém, é preciso aguardar para verificar como serão os movimentos desses grupos, que a acompanham, e como vão reagir diante da possibilidade de ela ficar isolada.  Pode ser surgir uma nova reorganização de forças política, por exemplo. É preciso esperar mais tempo. O que se percebe é que muitos grupos políticos devem se mobilizar em torno da decisão da Suprema Corte, indicando mudanças no cenário político. Mas não dá ainda para afirmar o que acontecerá nem como serão eventuais mudanças que estão por vir. 

Duas perguntas para...

Gladstone Leonel Júnior, professor da pós-graduação em direito da Universidade de Brasília (UnB), pós-doutor em direitos humanos e cidadania e integrante da Comissão de Anistia do Ministério da Justiça

O que representam o julgamento e a condenação de Cristina Kirchner para a Argentina e América do Sul?
O que acontece na Argentina é um reflexo do que se a com o Judiciário na América do Sul, em geral. É a criminalização dos projetos populares. Isso não aconteceu apenas com o Kirchnerismo na Argentina, mas foi a operação Lava Jato no Brasil, o que acontece com o Evo Morales, na Bolívia, e com Rafael Correa, no Equador. O Poder Judiciário acaba contribuindo frente a uma ordem diante de um governo popular que a Cristina representa. Essa condenação é mais um momento dessa criminalização do Judiciário cumprindo o papel de mantenedor da ordem.

Na sua avaliação, muda o cenário político argentino?
Muda, sim, porque se trata da maior liderança argentina atual. Isso tende a intensificar também a uma resistência ao governo Javier Milei. Por mais que demonstre que apresente uma sobrevida ao governo atual porque a principal liderança tenha sido condenada, esse grupo peronista terá de se reinventar e poderá vir com mais força. Acredito que a mobilização vai acontecer. Talvez uma reorganização que não irá se pautar em torno da Cristina, mas irá fortalecer a sociedade civil. 

 

postado em 12/06/2025 06:00
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