
Assis Chateaubriand não foi apenas um dos grandes jornalistas brasileiros. Mais do que isso, foi protagonista da história brasileira no século 20. Repórter e articulista brilhante, o paraibano de Umbuzeiro não negava fogo em uma polêmica. Transformou os Diários Associados em um império da comunicação e influiu nos acontecimentos. Visionário, trouxe a primeira emissora de tevê para o Brasil, criou revistas que vendiam 700 mil exemplares, formou uma rede poderosa de emissoras de rádio, criou o Museu de Arte Moderna de São Paulo (Masp) e revelou inúmeros talentos musicais. Chateaubriand é tema do musical Chatô & Os Diários Associados — 100 anos de uma paixão, que será apresentado, somente nesta quarta-feira (11/6) para o público, em duas sessões, no auditório master do Ulysses Guimarães, protagonizado por Stepan Nercessian, com roteiro de Fernando Morais e Eduardo Bakr. Em entrevista ao Correio, Fernando Morais, autor da biografia clássica Chatô — O rei do Brasil (Cia das Letras), traça um retrato de corpo inteiro do fascinante e polêmico personagem.
Entrevista / Fernando Morais
Chateaubriand é um personagem fascinante. Mas você imaginou algum dia que ele se tornaria um musical?
Não, nunca me ocorrera que o livro pudesse virar um musical. Sempre acreditei que a história dele daria um filme, o que afinal se concretizou — continuo achando que ele ainda rende mais um filme, além do ótimo Chatô, do cineasta e ator Guilherme Fontes — mas jamais me ou pela cabeça que ele (o livro) se convertesse em um musical.
Como transformou a vida de Chateaubriand em um musical? Que Chatô é esse que contemplou no roteiro e no espetáculo?
Foi trabalhoso, mas não foi complicado. A facilidade decorre da íntima ligação de Chatô e de seu império com o que houve de melhor da música popular brasileira no século 20 — dos sambões e boleros até a revolucionária fase do Tropicalismo. É preciso considerar que, se a parte hard do musical é de minha autoria, ele não ficaria em pé sem a indispensável parceria com Eduardo Bakr, que deu alma e suingue aos meus escritos.
Qual a conexão de Chatô com a música e com a cultura?
A conexão de Chatô com a cultura está à vista de quem a pela avenida Paulista, materializada no Masp. Chatô conseguiu reunir o que havia de melhor no mundo, nas artes plásticas — o Masp é o único museu do Hemisfério Sul a ter, no seu acervo, um Rembrandt. E, curiosamente, não deixou essa fortuna incalculável para seus filhos e herdeiros. Qualquer brasileiro pode ver, de graça, a coleção magistral que ele e o Pietro Maria Bardi legaram ao país. Com relação à música, Chatô teve uma atuação igualmente excepcional. Nada de relevante do que foi concebido na música brasileira no século 20 ou despercebido ao império de comunicações que ele montou. E é preciso considerar que boa parte da nossa produção musical do período nasceu do estímulo dado pela revista O Cruzeiro e pela rede de jornais, estações de rádio e de televisão criadas por Chateaubriand. Mais de uma vez ele identificou pessoalmente em anônimos amadores o talento para a música que os transformaria em estrelas de primeira grandeza. Apenas como exemplo, cito o caso de Dorival Caymmi, uma descoberta pessoal de Assis Chateaubriand.
Como foi a relação de Chatô com a democracia e por que a peça suscitou um debate tão intenso sobre a anistia aos golpistas do 8 de janeiro de 2022? De que maneira esse espetáculo pode contribuir para o debate atual da democracia no país?
Sem desconsiderar o caráter contraditório de Chatô, o saldo que ele deixou é de alguém comprometido com a democracia. Ele participou de armas na mão da Revolução de 30, liderada por Getúlio, de quem seria amigo, inimigo e amigo durante as décadas em que conviveram. Rompeu com Vargas em 1932 e juntou-se aos paulistas na revolta pela reconstitucionalização do Brasil, atrevimento que lhe custou cadeia, confisco de jornais e a ameaça de deportação para o Japão. Apoiou o golpe de 1964, fez campanhas pedindo à população a doação de ouro para reforçar o Tesouro Nacional — e, como era de se esperar, rompeu com os militares antes mesmo que o golpe completasse seu segundo aniversário. Tudo leva a crer que, se estivesse vivo, apontaria seus poderosos canhões contra a tentativa de anistiar os golpistas de 8 de janeiro de 2022. A inserção desse momento político no musical, décadas depois da morte de Chatô, é absolutamente coerente com a trajetória dele.
Como se deu a relação entre Chatô e Brasília? Ela teve momentos de recusa e de adesão?
Como era da personalidade de Chatô, ele foi e voltou. Originalmente, era contra a mudança da capital para Brasília, mas ao perceber a dimensão que a futura capital tinha para o desenvolvimento integrado do Brasil, converteu-se em um sólido defensor da ideia do presidente Juscelino Kubitschek. Já nessa fase, ficou célebre o puxão de orelhas que ele aplicou em seu mais importante repórter e editorialista, David Nasser. Autor de um texto contra Brasília, Nasser recebeu severa reprimenda do patrão. Tentou se explicar, afirmando tratar-se de um artigo assinado, ou seja, a defesa de uma opinião pessoal. Recebeu de Chatô uma resposta que resume a relação que este mantinha com seus veículos: "Se o senhor quer defender sua opinião, monte uma revista. Na minha revista, o senhor defende a minha opinião".
Ao lermos biografias, temos, geralmente, o contexto histórico do biografado. Mas, em relação a Chatô, constatamos que ele foi um dos protagonistas da história brasileira. Em que situações ele foi figura principal e por que isso aconteceu?
Contar a história de Chatô foi, em certa medida, recontar a história do Brasil a partir da ótica, do ponto de vista de um jornalista ímpar. Ele não se conformava apenas em noticiar os fatos, mas insistia em ser parte desses fatos, de que lado fosse. Não houve um só momento político, cultural ou que dissesse respeito ao futuro do Brasil do qual ele não tenha participado. Não apenas como jornalista, mas como protagonista.
Quais você considera as iniciativas e ações mais inovadoras e importantes de Chatô para a comunicação no Brasil?
Chatô tinha obsessão pela notícia e acreditava que um bom veículo se construía com grandes e boas reportagens. "Um jornal não se faz (com letras de) chumbo, tinta e papel", costumava repetir. "Um grande jornal se faz com grandes repórteres". A melhor prova disso era O Cruzeiro, uma revista de grandes repórteres e grandes reportagens. Em um Brasil com 30 milhões de habitantes, em que mais da metade da população era composta de analfabetos, O Cruzeiro chegou a vender 700 mil exemplares. E não tinha s. O leitor tinha que ir à banca de jornais e comprar seu exemplar. Seus jornais foram pioneiros em substituir o chumbo pelo offset, suas rádios eram as que tinham a mais extensa rede de cobertura. Sobre o pioneirismo visionário de Chatô, o melhor case é o da implantação da televisão em nosso país — quando no mundo só havia estações de TV nos Estados Unidos e na Alemanha. Chatô estava tão adiante de seu tempo que no dia em que a TV Tupi foi ao ar pela primeira vez, no início dos anos 1950, descobriu-se que não havia televisores à venda no país.
Como se tornou possível Chatô construir o que foi chamado de império das comunicações no Brasil com os Diários Associados? E qual é o legado de Chatô para o jornalismo?
Há um episódio que ilustra bem a forma como Chatô construiu seu império. Ao saber que havia um jornal à venda em uma capital nordestina em que os Associados não tinham presença, Chatô despachou para lá seu diretor João Calmon com ordens para comprar o veículo. Algumas semanas se aram e, como Calmon não dava notícias, Chatô telefonou ao diretor, quando se dá um diálogo memorável: — E então, seu Calmon, como vai a compra do jornal? — Tudo ajustado, o negócio está fechado. Só falta o senhor me mandar o dinheiro? — Dinheiro? Mas, seu Calmon, com dinheiro, qualquer português compra o que quiser. E o legado de Chatô para o jornalismo, na minha opinião, era sua paixão pelas reportagens. Sua receita de bom jornalismo continua de pé um século depois da criação de seu primeiro veículo: muita informação e pouca opinião.
João Cabral de Melo Neto ocupou a cadeira de Chateaubriand na Academia Brasileira de Letras e afirmou, no discurso de posse, que Chatô era um escritor de talento que captou a fala nordestina na linguagem escrita. Como avalia o talento de jornalista-polemista-escritor de Chatô?
Chatô não se contentava em ser dono de um império de comunicações e participar, em pessoa, dos fatos políticos importantes. Como aconteceu em diversas ocasiões, ele se vestia de repórter e escrevia — à mão, com uma caligrafia de garranchos, que poucos conseguiam entender — suas próprias reportagens. Isso aconteceu depois do assassinato de João Pessoa, na Paraíba, nas raízes da Revolução de 1930, no processo de aquisição de obras de arte para o Masp e na defesa dos indígenas brasileiros. Quando a Amazônia estava tão distante do Brasil como outro planeta, ele estava lá, em pessoa, nadando nu com caciques no rio Xingu — e escrevendo sobre o que vira. E escrevia bem, furiosamente, misturando fatos e emoções pessoais em artigos e reportagens memoráveis.
Chatô dificilmente seria aprovado em termos dos valores do politicamente correto vigente na atualidade. Como avalia esse aspecto do comportamento e dos métodos de Chatô em relação às realizações que ele empreendeu?
Ele não tinha limites e não se escondia nos desvãos das cortinas. Era capaz de insultar um grande empresário, no intervalo de uma novela, porque a vítima se recusara a comprar para o Masp um Modigliani à venda em uma galeria de Paris. Ou ameaçar até o presidente da República para que o Código Civil fosse mudado e ele obtivesse a paternidade de uma filha tida fora do casamento. O que diferenciava Chatô dos concorrentes é que ele não operava nas sombras nem recorria a intermediários para conseguir o que queria. Chatô tinha seu próprio padrão de conduta ética e seguia-o às claras, pouco se importando com o que pudesse pensar a opinião pública.
Que comparação você faria entre três grandes empresários da comunicação no Brasil: Roberto Marinho, Sílvio Santos e Chatô?
Não há termos de comparação. Chatô era ímpar, único. Nunca houve ninguém parecido, antes dele, e nada indica que ainda possa surgir um novo Assis Chateaubriand.
O que você imagina que Chatô faria hoje se ele fosse um magnata poderoso da comunicação ou um dono de big tech? O que Chatô faria se ele fosse Elon Musk?
Se fosse Elon Musk, Chatô estaria fustigando inimigos em outras galáxias.
Chatô e os Diários Associados — 100 anos de uma paixão
Quarta-feira (11/6), às 16 e às 20h, no Centro de Convenções Ulysses Guimarães. Ingressos: de R$ 50 a
R$ 200. Não recomendado para menores de 10 anos.
Saiba Mais

Severino Francisco
Subeditor do caderno de cultura e cronistaJornalista desde 1979, atuou como repórter, editor, articulista, crítico cultural e cronista no Jornal de Brasília e no Correio Brasiliense. Lecionou jornalismo no UniCEUB. É autor, entre outros, de Da poeira a eletricidade , história da música de